terça-feira, 30 de novembro de 2010

O Aleph - Jorge Luíz Borges

Cumpri suas ridículas instruções; por fim, saiu. Fechou cautelosamente o alçapão; a escuridão, embora houvesse uma fresta que depois distingui, deu a impressão de ser total. Subitamente, compreendi meu perigo: deixara-me soterrar por um louco, depois de tomar um veneno. As bravatas de Carlos evidenciavam o íntimo terror de que eu não visse o prodígio; Carlos, para defender seu delírio, para não saber que estava louco, tinha de matar-me. Senti um confuso mal estar, que tentei atribuir à rigidez e não ao efeito de um narcótico. Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph.

Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? Os místicos, em análogo transe, são pródigos em emblemas: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.

Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta
da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura) cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.

Senti infinita veneração, infinita lástima.

domingo, 28 de novembro de 2010

Carlos Nóbrega dos Riachos

Carlos Nóbrega dos Riachos, homem impetuosamente político, distraidamente artístico, uma oposição estranha e bela. Crítico engrandecido, altivo, esbravejava aos 7 mares, ao tom de conquistador convicto de persuasão aliciante. Tal olhar refulgente e fumengante se esvaziava, amolecia, aquietava num segundo... Olha! É o caminhar do carangueijo caminhante.
...s mares junto aos olhos se acalmavam... O vento pacificava a existência, o sereno descia e com o simpático carangueijo tiritante Carlos se distraia.
O mar era um, belo e um, a praia era uma, bela e uma, e o carangueijo tiritante num segundo era tragado pela areia como numa bruma.
Carangueijo agora, lembrança de sonho. Carlos, acariciador de areia, a apunhalava e a deixava escorrer feito véu vislumbrado pela efêmera cena.
E o místico carangueijo ainda flutuava meio abobalhado pela lúdica memória de Carlos. E assim...
TEC!
Num estalo Carlos sai da hipnose. Karateca vigilante. Olha a volta, Carlos nem se percebeu distante. Então Carlos se levanta, chacoalha a areia da calça e caminha firmemente sem ter idéia que da vida ele é um amante.

Palavras

Palavras não são apenas palavras. Elas têm disposições de ânimo, climas próprios.

Quando uma palavra se aloja dentro de você, ela traz um clima diferente à sua mente, uma abordagem diferente, uma visão diferente. Chame a mesma coisa de um nome diferente e perceberá: algo fica imediatamente diferente.

Existem as palavras dos sentimentos e as palavras intelectuais. Abandone cada vez mais as palavras intelectuais, use cada vez mais palavras dos sentimentos. Existem palavras políticas e palavras religiosas. Abandone as palavras políticas. Existem palavras que imediatamente criam conflito. No momento em que você pronuncia, surgem discussões. Assim, nunca use uma linguagem lógica e argumentativa. Use a linguagem do afeto, do carinho, do amor, para que não surja discussão alguma.

Se você começar a ficar consciente disso, perceberá uma imensa mudança surgindo. Se você estiver um pouco alerta na vida, muitas infelicidades poderão ser evitadas. Uma única palavra pronunciada na inconsciência pode criar uma longa corrente de aflição. Uma leve diferença, apenas uma virada muito pequena, e isso cria mudança. Você deveria ser muito cuidadoso e usar as palavras quando absolutamente necessário. Evite palavras contaminadas. Use palavras arejadas, não controversas, que não são argumentos, mas apenas expressões de suas impressões.

Se você puder se tornar um especialista em palavras, toda a sua vida será totalmente diferente. Se uma palavra trouxer infelicidade, raiva, conflito ou discussão, abandone-a. Qual é o sentido de carregá-la? Substitua-a por algo melhor. O melhor é o silêncio, depois é o canto, a poesia, o amor.

Osho

sábado, 27 de novembro de 2010

Before Sunset - A Waltz For a Night



Essa passagem é do filme Antes do Pôr-Do-Sol (nome original: Before Sunset), que é a continuação do Antes do Amanhecer (Before Sunrise). No primeiro filme um garoto conhece uma garota no trem e ele a convoca a passar um dia em Viena dizendo: Se imagine casada, velha, e você está infeliz. Então você irá olhar para o passado e lembrar de todos os homens que você dispensou na vida e você irá se arrepender pois poderia ter sido um deles que faria sua vida feliz. Se você passar um dia em Viena comigo você vai me conhecer e você vai poder ficar com a consciência tranqüila! Então ela aceita. É um filme romântico, mas não um romance platônico, é um romance "acontecível" entre dois jovens amantes da vida e intelectualizados. E na continuação eles se reveêm após 10 anos, cada um com uma vida já construída.

Deixe-me cantar uma valsa para você
Vinda de lugar algum, vinda dos meus pensamentos
Deixe-me cantar uma valsa para você
Sobre essa única noite

Você foi para mim, aquela noite
Tudo aquilo que eu sonhei na vida
Mas agora você se foi
Você se foi para longe
No caminho para sua ilha de chuva

Foi para você apenas coisa de uma noite
Mas você foi muito mais para mim
Apenas para você saber

Eu ouvi rumores sobre você
Sobre todas as coisas ruins que você faz
Mas quando nós estivemos juntos a sós
Você não pareceu um jogador

Eu não ligo para o que eles dizem
Eu sei o que você significou para mim aquele dia
Eu apenas queria outra tentativa
Eu apenas queria outra noite
Mesmo que isso não pareça nada correto
Você significou para mim muito mais
Do que qualquer outro que eu encontrei antes

Apenas uma única noite com você, pequeno Jesse
Vale milhares com qualquer outro

Eu não tenho amargura, meu querido
Eu nunca vou esquecer essa coisa de uma noite
Mesmo amanhã, em outros braços
Meu coração será seu até eu morrer

Deixe-me cantar uma valsa para você
Vinda de lugar algum, vinda dos meus pensamentos
Deixe-me cantar uma valsa para você
Sobre essa única noite


Divirtam-se!

domingo, 21 de novembro de 2010

A Morte

Eu existo
Pelo Sonho sou esquecida
E no pesadelo memorada.
Simplesmente existo
Mas é com maus olhos que sou vista.
Sou indiferente e inerente,
Silenciosa e, por natureza, inexplicável.
Uns me louvam com apatia.
Outros me negam como heresia.
Sou o desfecho
Anseio dos desesperados
Filha da Vida e do Desejo
Sou o que os tornam idealizados.
Sendo assim, simplesmente existo,
como um menino abandonado.

Francisco Meyer - Tião



-O que parece esses acordes?
-Ah, sei lá, um mendigo andando na rua.
Assim surgiu Tião.

Tião

Essa é a história de um homem que conhecia a liberdade.

Ô Tião, ei Tião, ô Tião
Livre da vida
Saudade é desânimo
Solidão

Ô Tião, ei Tião, mas por que Tião?
O passo torto
Olhar de bicho
A voz jogada
A rua é o nicho
E o pasto é resto
Ó um trocado na calçada!
Indecisão.

Ô Tião, cachaça ou pão?
Promessa ou ilusão?
A fome aperta
Mas tudo incomoda
Que baque meu irmão

Ô Tião, ei Tião, mas por que Tião?
O passo torto
Olhar de bicho
A voz jogada
A rua é o nicho
E o pasto é resto
Ó um trocado na calçada!
Indecisão.

Ô Tião, mas por que Tião?
Cachaça ou pão?
Promessa ou ilusão?
A fome aperta
Mas tudo incomoda
Que baque meu irmão!

Ô Tião, mas por que Tião?
Faz isso não, Tião
Num dá tristeza não.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Estranha idéia

Um vivo estranhamento
Uma apressada especulação
Um desconfiado cochicho
Nasceu da silenciosa multidão

Era a peste geniosa
O cochicho proliferava
O enxame de mosquito
Obsessivamente dizimava

Não se viam mais as ruas
Nem o som daquele tambor
O jardim da dona Ciça
Acinzentado, era o horror

E o horror se via geral
Até a sagrada pedra na praça
Era ponto de pouso
Do dito mosquito infernal

Que zumbia negro
Ao ritmo do caos
Emanando um odor seco
Ocultando o que era vital.

E foi assim: do mero estranhamento
Esquecido no astral
Desencadeou a história
Do cochicho que se fez fatal.

A Loucura e a flor

Era tempo de confusão
Em que a expressão da alma
Se deparou com camadas brutas
Para fazer sorrir o sutil coração

O anseio gritou aos céus
E o enfeitou da Loucura
E o cientista quadrado disse:
-Pela Razão! O que é essa criatura?

A Loucura pela Terra ia espalhada
Se encontrou com uma flor
Que sorria a ela meio alegre
Assim um tanto quanto espantada

A Loucura se admirou, mas não quis arrancá-la
Pois a origem da flor
É a terra molhada
E luziu brilhante idéia: - Vou cultivá-la!

A Loucura mesmo louca
Sabia o que queria
Sabia que seria com aquela flor que aprenderia
E assim, meio doida, a Loucura dizia:

Eu sou toda aprendiz
Assim sou eu
Aprendiz... Louca e aprendiz
É isso que sou, flor

Quero aprender o Amor
Quero aprender a Dor
Quero aprender o tempo que se passa sob meus pés
Eu quero mesmo é devendar a Vida!

-Hei, florzinha
Você aí
Me desvende seu aroma
Quero tanto cultivá-la!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Cajuína



Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tão pouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria viva era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina.



CAETANO VELOSO FALA DE CAJUÍNA

Numa excursão pelo Brasil com o show Muito, creio, no final dos anos 70, recebi, no hotel em Teresina, a visita de Dr. Eli, o pai de Torquato. Eu já o conhecia, pois ele tinha vindo ao Rio umas duas vezes. Mas era a primeira vez que eu o via depois do suicídio de Torquato. Torquato estava, de certa forma , afastado das pessoas todas. Mas eu não o via desde minha chegada de Londres: Dedé e eu morávamos na Bahia e ele, no Rio (com temporadas em Teresina, onde descansava das internações a que se submeteu por instabilidade mental agravada, ao que se diz, pelo álcool). Eu não o vira em Londres: ele estivera na Europa, mas voltara ao Brasil justo antes de minha chegada a Londres. Assim, estávamos de fato bastante afastados, embora sem ressentimentos ou hostilidades. Eu queria muito bem a ele. Discordava da atitude agressiva que ele adotou contra o Cinema Novo na coluna que escrevia, mas nunca cheguei sequer a dizer-lhe isso. No dia em que ele se matou, eu estava recebendo Chico Buarque em Salvador para fazermos aquele show que virou disco famoso. Torquato tinha se aproximado muito de Chico, logo antes do tropicalismo: entre 1966 e 1967. A ponto de estar mais freqüentemente com Chico do que comigo. Chico e eu recebemos a notícia quando íamos sair para o Teatro Castro Alves. Ficamos abalados e falamos sobre isso. E sobre Torquato ter estado longe e mal. Mas eu não chorei. Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Senti-me um tanto amargo e triste, mas pouco sentimental. Quatro, anos depois, encontrei Dr. Eli, que sempre foi uma pessoa adorável, parecidíssimo com Torquato, e a quem Torquato amava com grande ternura, essa dureza amarga se desfez. E eu chorei durantes horas, sem parar. Dr. Eli me consolava, carinhosamente. Levou-me à sua casa. D. Salomé, a mãe de Torquato, estava hospitalizada. Então ficamos só, e eu na casa. Ele não dizia quase nada. Tirou uma rosa-menina do jardim e me deu. Me mostrou as muitas fotografias de Torquato distribuídas pelas paredes da casa. Serviu cajuína para nós dois. E bebemos lentamente. Durante todo o tempo eu chorava. Diferentemente do dia da morte de Torquato, eu não estava triste nem amargo. Era um sentimento terno e bom, amoroso, dirigido a Dr. Eli e a Torquato, à vida. Mas era intenso demais e eu chorei. No dia seguinte, já na próxima cidade da excursão, escrevi Cajuína.